Introdução
Para não criar expectativas sobre a confirmação da existência dos 50 cadernos que poderiam ter servido de fundação para a construção de “O Livro dos Espíritos”, esclarecemos de imediato que não os encontramos.
O que identificamos foram inconsistências nas narrativas sobre a composição do grupo que os teria gerado, principalmente nas de alguns autores mais modernos, além de falhas na grafia dos nomes dos participantes, o que dificulta a determinação de suas identidades.
O grupo proposto por Sausse
Quem primeiro citou estes cadernos foi Henri Sausse, ao afirmar: “(...) no início o Sr. Rivail, (...) esteve a ponto de abandoná-las [as manifestações] o que talvez teria feito sem as solicitações urgentes dos Srs. Carlotti, René Taillandier, membro da Academia de ciência, Tiedeman Manthèse (sic), Sardou pai e filho, Didier, editor, que vinham acompanhado o estudo destes fenômenos há cinco anos e reuniram cinquenta cadernos de comunicações diversas que não conseguiram ordenar. Conhecendo as vastas e raras aptidões de sintetização do Sr. Rivail, esses senhores entregaram-lhe os cadernos, pedindo-lhe que os lesse e finalizasse. (...)” [1]. O que nos leva a identificá-los como um único grupo é a fala “reuniram (...) e não conseguiram arranjar”, dando a impressão de um trabalho conjunto dos envolvidos.
Na lista acima não consta a Srta. Japhet, nem o Sr. Roustan, citados por Sausse em outro trecho: “Em 1856, o Sr. Rivail assistiu aos encontros espíritas que se realizavam na rua Tiquetonne, na casa de Sr. Roustan, com a Srta. Japhet, sonâmbula, que obteve como médium algumas comunicações muito interessantes usando o cesto; ele pode controlar por esta médium as comunicações obtidas e ordenadas anteriormente.”. Ainda assim, entendemos que Sausse poderia estar se referindo ao grupo da Srta. Japhet como origem dos tais cinquenta cadernos, nos cinco anos anteriores à entrega a Kardec. Quem seriam os integrantes deste grupo?
Antes, vamos a um esclarecimento: a Srta. Célina Béquet dita Japhet [2-3] não citou nada sobre estes cadernos quando falou com Aksakof, em uma entrevista ao “The Spiritualist” de agosto de 1875 [4]. Ela apenas disse que Rivail teria se apossado indevidamente de um material, na forma de manuscritos, que teria sido utilizado em “O Livro dos Espíritos”, e não teria sido devolvido a ela.
O grupo da Srta. Japhet
Sabemos por Aksakof, neste artigo de 1875, que o grupo tinha uma formação em 1849 e que em 1855 praticamente todos os membros haviam mudado. Analisaremos cada uma das formações citadas por ele e por outras fontes (consulte a tabela para ver os nomes em todas as citações).
Em novembro de 1861, é falado na “Revue Spiritualiste” [5] que o círculo em 1849 era formado pela Sra. Dabnour (sic), pelo Sr. barão Johann Ludwig von Guldenstubbe [6], pelo abade Ferdinand François Châtel [7], pela Srta. Japhet e pelo seu magnetizador Sr. Jean Pierre Roustan, totalizando cinco pessoas. Esta mesma formação também aparece no livro “Pneumatologia Positiva” do barão von Guldenstubbe (um dos integrantes) e sua irmã Julie, na versão de 1870 [8].
Esse livro foi utilizado como referência por Aksakof, em agosto de 1875, para nomear os participantes do grupo, porém com uma diferença: o acréscimo à narrativa das três senhoritas Bouvrais aos demais integrantes, o que somaria oito participantes, porém no texto consta que eram nove (abordaremos sobre isso mais a frente). Esta entrevista foi reproduzida pela Sra. Emma Britten Hardinge no livro de 1883 “Nineteenth Century Miracles” [9], com as mesmas três senhoritas fazendo parte dos membros.
Passemos à formação em 1855, que foi a frequentada por Kardec em 1856, segundo “Obras Póstumas”. De acordo com lista informada pelo Sr. Aksakof, à exceção da Srta. Japhet e do Sr. Roustan, os demais integrantes mudaram em relação à 1849, sendo agora: o Sr. Tierry, o Sr. Ramón de la Sagra (Ramón Dionisio José de la Sagra y Peris), o Sr. Sardou pai (Antoine Léandre Sardou), o Sr. Sardou filho (Victorien Sardou), o Sr. Taillandier e o Sr. Tillman. Na reprodução da entrevista no livro da Sra. Hardinge não consta o nome do Sr. Tierry.
Na Revista Espírita de 1º de abril de 1884 [10], há um artigo com uma carta do Sr. Sardou pai em que ele reproduz um trecho do livro da Sra. Hardinge, com a lista de integrantes desta formação de 1855. Como ele fez parte do grupo, teria concordado com esta lista sem o Sr. Tierry?
Este artigo visou questionar as afirmações do Sr. Aksakof, tendo usado como referência a versão no livro da Sra. Hardinge. Na carta o Sr. Sardou pai alegou que tudo o que foi dito sobre o grupo e as acusações da Srta. Japhet seria falso. Imaginamos que ele tenha exagerado e supomos que queria se referir apenas às acusações da Srta. Japhet contra Allan Kardec. Não haveria razão para desconfiar das informações sobre a primeira configuração do grupo, confirmadas pelo barão, nem ele corrigiu a segunda formação, da qual ele fez parte.
Comparando o grupo apontado por Sausse com o grupo da Srta. Japhet e do Sr. Roustan, identificamos três nomes iguais à formação em 1855: os Srs. René Taillandier, Sardou pai e Sardou filho. É possível ter um quarto participante em comum, se o Sr. Tillman (citado por Sardou pai como Sr. Tildemann) for Tiedeman Manthèse [Martheze], citado por Sausse. Porém, não se pode ignorar as diferenças: o Sr. Tierry não aparece na lista de Sausse (e pode ser que não faça parte mesmo, já que foi citado apenas por Aksakof). E quanto aos Srs. Carlotti e Didier pai (Pierre Paul Didier) incluídos por Sausse? Sabemos apenas que este último esteve envolvido com experiências com a Srta. Huet [11].
Outras propostas de composição para o grupo
As maiores divergências em relação à formação do grupo estão nas narrativas de dois autores: Canuto Abreu [12] e Paulo Henrique de Figueiredo [13].
Canuto não cita nada sobre os cadernos, apenas fala sobre o grupo da Srta. Japhet à época do lançamento de “O Livro dos Espíritos”, e, na composição, faz uma mistura ao citar a Sra. D’Abnour e o Sr. barão von Guldenstubbe, presentes apenas na formação inicial de 1849, e os Srs. Ramón de la Sagra e o barão Tiedeman (sic), da configuração de 1855, deixando outros de fora. Além disso, inclui no grupo, sem qualquer fonte primária, o pai da Srta. Japhet, Sonia (sic), como irmã do barão von Guldenstubbe, e o Conde e a Condessa D’Ourches. Por fim, ele erra em dois nomes: ao invés de Srta. Ruth Celine Japhet, o correto é Srta. Célina Eugenie Béquet (que era conhecida na época como Célina Japhet), e o barão von Guldenstubbe não teve irmã de nome Sonia e sim Julie Wilhelmine von Guldenstubbe.
O pai da Srta. Japhet não poderia fazer parte à época, já que desencarnou em 20 de fevereiro de 1855. Quanto ao conde D’Ourches (Sr. conde Didier Balthazard D’Ourches), encontramos uma referência a uma participação eventual dele neste grupo [16], mas a tal condessa não existe, pois ele era celibatário, conforme vemos na sua genealogia [14] e no seu registro de óbito [15].
Já Paulo Henrique afirmou que a narrativa dos 50 cadernos é verdadeira e assumiu que o grupo responsável por eles seria o do Sr. Roustan e da Srta. Japhet. Encontramos nas páginas 123 e 124 do livro “Autonomia” a seguinte afirmação: "Didier esteve na reunião mediúnica de Roustan e Japhet que, segundo AKSAKOF (1875, p. 74-5), contou com professores como: Saint-René Taillandier (...), Amédée Thierry (...), Abel-François Villemain (...). Também participou (...) Ramón de la Sagra (...). O mais novo dos participantes foi Victorien Sardou (...)”.
Esta lista de nomes não corresponde à que transcrevemos do artigo de Aksakof, sobre o grupo da Srta. Japhet com o Sr. Roustan, coincidindo apenas os nomes dos Srs. Taillandier, Ramón de la Sagra e Sardou filho. Porque teria deixado de fora o Sr. Sardou pai? E dentre os acrescentados: porque entrou o Sr. Didier pai, que só apareceu na obra de Henri Sausse? O que indica que o Sr. Amédée Thierry é o Sr. Tierry? O Sr. Villemain seria uma tentativa de definir a identidade do Sr. Tillman?
Nos chamou atenção o currículo apresentado para alguns destes personagens, que o autor de “Autonomia” aponta como ligados ao Espiritualismo Racional, um dos temas centrais de seu livro, ou aos druidas, encarnação relativa ao pseudônimo de Allan Kardec:
Didier (1800-1865) dedicou-se a publicar o registro estenográfico das aulas dos grandes professores fundadores do Espiritualismo Racional, como Victor Cousin e Jouffroy;
Taillandier (1817-1879) era historiador e homem de letras, acadêmico que participou da reformulação da educação pelo Espiritualismo Racional;
Amédée Thierry (1797-1873) era historiador especializado na história dos gauleses, na doutrina druídica, ancestral da Doutrina Espírita, conforme Allan Kardec;
Abel-François Villemain (1790-1870), audacioso defensor do pensamento liberal que lutou contra a censura e foi favorável à retirada do catolicismo como religião do Estado (...).
Quanto aos 50 cadernos, Figueiredo afirma: “todos esses pensadores fizeram perguntas inteligentes, adotando a psicologia espiritualista e as ciências filosóficas como guia, e anotaram tudo cuidadosamente em cinquenta cadernos, entregues ao professor Rivail em 1854.”.
Do que identificamos, Sausse foi o único que afirmou que estes cadernos existiram e foram entregues a Kardec antes deste começar os trabalhos, sem informar o ano [1]. Os dois que participaram do grupo, a Srta. Japhet e o Sr. Sardou pai, tiveram um discurso diferente. A Srta. Japhet acusou Kardec de se apoderar de manuscritos após sua saída do grupo, e não de ter recebido conteúdo antecipadamente, ao dizer “Assim que ele [Kardec] saiu, ele se apoderou de um conjunto de manuscritos que tinha levado da casa da senhora (sic) Japhet, e se deu o direito de um editor por nunca tê-lo devolvido. Para os inúmeros pedidos de devolução que foram feitos a ele, ele contentou-se em responder: 'Deixe-a ir na lei contra mim'. Estes manuscritos foram, em certa medida, úteis para a elaboração do 'Livro dos Médiuns', cujo conteúdo, como diz a Srta. Japhet, havia sido obtido através das comunicações mediúnicas”. Por fim, o Sr. Sardou pai desmentiu a versão da Srta. Japhet, afirmando que Kardec apenas tomou nota das comunicações ocorridas no grupo, assim como fez em outros grupos.
Sobre as identidades de alguns dos personagens citados
Nas diversas listas são citados personagens não conhecidos e, para identificá-los, é essencial que seus nomes tenham sido grafados corretamente. Infelizmente erros de grafia são comuns, o que às vezes confunde e dificulta nosso trabalho. Encontramos as seguintes diferenças de grafia nos nomes: a Revue Spiritualiste escreve Sra. Dabnour ao invés de D’Abnour, conforme o livro do barão von Guldenstubbe. A Sra Hardinge, ao copiar Aksakof, cita as três irmãs, porém com o nome grafado como Bauvrais, ao invés de Bouvrais. Na reprodução da carta do Sr. Sardou na Revista Espírita, o nome de Roustan saiu errado, grafado como Roustang. Idem para o sobrenome de Ramón de la Sagra, que ele chamou de “la Lagia” (mesmo erro cometido por Canuto) e que a Sra. Hardinge chamou de “la Sagia”. Por fim, ele citou o Sr. Tildemann, ao invés do Sr. Tillman originalmente citado por Aksakof e reproduzido pela Sra. Hardinge, que Canuto chamou de barão Tiedeman.
Sobre os personagens:
Sra. D’Abnour e as três Bauvrais ou Bouvrais: precisaremos investigar mais, por isso preferimos não revelar nossas conclusões até agora.
Sr. Taillandier: conhecemos dois irmãos, o Sr. Edouard Marie Taillandier (mencionado equivocadamente como Tailliandier na Revista Espiritualista de dezembro de 1864 [17]), e o Sr. René Gaspard Ernest “Saint-René” Taillandier [18], que supomos ser o participante do círculo da Srta. Japhet, por ter sido citado na Revista Espírita de junho de 1879 como um dos “primeiros iniciados espíritas” [19].
Sr. Tillman | Sr. Tildemann | barão Tiedeman: O nome provavelmente está grafado errado e não há evidências de que exista um barão com este nome envolvido com o Espiritismo. Poderia tratar-se do Sr. Johannes Nicollas Tiedeman (também conhecido como Tiedeman Martheze [20-22]), citado por Sausse, embora ainda não possamos afirmar [23].
Sr. Tierry: ainda não o encontramos, apesar de termos nosso suspeito.
Sr. Carlotti: ainda não temos convicção sobre a identidade deste personagem. O colega Leonil Marques já publicou suas conclusões na forma de ensaio [24-25].
Considerando que o Sr. Aksakof citou oito nomes na formação do grupo de 1849, porém afirmou serem nove integrantes, suspeitamos que este último poderia ser Julie Wilhelmine von Guldenstubbe, irmã do Barão von Guldenstubbe, pois vários livros escritos por ele também contaram com sua coautoria, inclusive o “Pneumatologia Positiva” que tratou do assunto.
Conclusão
Observamos que mesmo em autores que publicaram obras e textos dentro do mesmo século da ocorrência dos fatos (Guldenstubbe, Japhet, Aksakof, Hardinge, Sardou pai e Sausse) existem divergências de relatos sobre o mesmo fato. Confiar cegamente em dados publicados sem a devida fundamentação em fontes primárias pode levar a construções falsas sobre a história do Espiritismo. A prática comum de se repetir informações dadas em antigas bibliografias, sem o devido cuidado e o uso de metodologias utilizadas pela historiografia, pode propagar erros que se tornam "verdades".
Quanto aos 50 cadernos, considerando que tanto Kardec, que na Revista Espírita de janeiro de 1858 contou sobre a elaboração de “O Livro dos Espíritos” e não os mencionou, como a Srta. Japhet e o Sr. Sardou pai, integrantes do grupo que forneceu comunicações e revisou o livro, não mencionaram nada, supomos que esta narrativa possa ser mais um equívoco da obra de Sausse, que acabou sendo inadvertidamente propagada como verdade, ainda que a ausência de prova não seja prova de ausência.
Em resumo, todo cuidado é pouco na hora de pesquisarmos a identidade dos personagens relacionados ao Espiritismo. O mesmo zelo deve ter o leitor, consumidor das informações pesquisadas, que as deve submeter à sua análise crítica, para não se tornar refém das conclusões alheias, muitas vezes fundamentadas em suposições “escolhidas a dedo” para dar conformidade às suas teorias.
Esta pesquisa do CSI contou com a revisão dos parceiros Obras de Kardec (OdK) e AKOL.
Referências:
[1] https://bit.ly/3vEtPJZ [2] https://www.allankardec.online/search?q=japhet [3] https://kardecpedia.com/obra/66 [4] https://bit.ly/2T1VEbA [5] https://bit.ly/2SBjElN [6] https://de.wikipedia.org/.../Johann_Ludwig_von_G%C3... [7] https://fr.wikipedia.org/wiki/Ferdinand_François_Châtel [8] https://bit.ly/3fTmujk [9] http://www.ehbritten.org/.../ehb_nineteenth_century... [10] https://www.retronews.fr/.../1-avril-1884/1829/3285803/17 [11] https://www.allankardec.online/search?q=huet [12] bit.ly/3uTYymC [13] Autonomia, (p. 123 - 124). Edição do Kindle. [14] https://gw.geneanet.org/garric?lang=en&n=d%20ourches&oc=0... [15] p. 27 de https://bit.ly/3g1FGLN [16] https://gallica.bnf.fr/.../bpt6.../f511.image.r=guldenstubbe [17] http://iapsop.com/.../revue_spiritualiste_v7_n12_1864_dec... [18] https://fr.wikipedia.org/wiki/Saint-René_Taillandier [19] https://www.retronews.fr/.../1-juin-1879/1829/3285509/27 [20] https://www.facebook.com/HistoriaDoEspiritismo/posts/771564793607305 [21] https://www.facebook.com/HistoriaDoEspiritismo/posts/772175070212944 [22] https://www.facebook.com/HistoriaDoEspiritismo/posts/772724720157979 [23] https://www.facebook.com/HistoriaDoEspiritismo/posts/773482450082206 [24] https://www.facebook.com/variacoesintuitivas/posts/2966046930304973 [25] https://www.facebook.com/variacoesintuitivas/posts/2970876679821998